Contradição e unidade

No encontro do dia 27 de maio conversamos sobre o seguinte texto, excerto do livro «Paisagem interna» de Silo:

IX. CONTRADIÇÃO E UNIDADE

1. A contradição inverte a vida. É a inversão dessa corrente crescente da vida o que se experimentacomosofrimento. Por isso, o sofrimento é o sinal que adverte sobre a necessidade de mudança na direcção das forças que se opõem.

2. Aquele que se encontra detido na caminhada pela sua repetida frustração, está aparentemente detido (porque na verdade regressa). E uma e outra vez, os fracassos passados fecham o seu futuro. Quem se sente frustrado vê o futurocomorepetição do seu passado, ao mesmo tempo que experimenta a necessidade de se separar dele.

3. Quem, prisioneiro do ressentimento, encara o futuro, o que não fará para vingar em intrincada desforra o seu passado?

4. Na frustração e no ressentimento, violenta-se o futuro para que curve o seu dorso em sofredor regresso.

5. Às vezes, os sábios recomendaram o amorcomoescudo protector dos sofridos embates… Porém a palavra “amor”, enganosa palavra, significa para ti a desforra do passado, ou uma original, límpida e desconhecida aventura lançada ao porvir?

6. Assimcomotenho visto o solene cobrir grotescamente o ridículo, assimcomotenho visto a vácua seriedade enlutar o grácil do talento, tenho reconhecido em muitos amores a auto-afirmação vindicativa.

7. Que imagem tens dos sábios? Não é verdade que os concebescomoseres solenes, de gestos pausados…comoquem tem sofrido enormemente e, em função desse mérito, te convida das alturas com suaves frases, nas quais se repete a palavra “amor”?

8. Eu, em todo o verdadeiro sábio, tenho visto uma criança que brinca correndo no mundo das ideias e das coisas, que cria generosas e brilhantes borbulhas que ele próprio faz estourar. Nos faiscantes olhos de todo o verdadeiro sábio tenho visto “dançar rumo ao futuro os pés ligeiros da alegria”. E muito poucas vezes tenho escutado da sua boca a palavra “amor”…, porque um sábio verdadeiro nunca jura em vão.

9. Não acredites que pela vingança purificas o teu passado sofrido, nem tão-pouco por usar o “amor” como toda poderosa palavra, ou como recurso de uma nova armadilha.

10. Verdadeiramente amarás quando construíres com a mira posta no futuro. E se recordas o que foi um grande amor, só deverás acompanhá-lo com suave e silenciosa nostalgia, agradecendo o ensinamento que chegou até ao teu dia actual.

11. Assim sendo, não romperás com o teu sofrimento passado falseando ou aviltando o futuro. Fá-lo-ás mudando a direcção das forças que provocam em ti contradição.

12. Creio que saberás distinguir entre o que é dificuldade (bem vinda seja, já que podes superá-la), e o que é contradição (solitário labirinto sem ponto de saída).

13. Todo o acto contraditório, que por qualquer circunstância tenhas efectuado na tua vida, tem um inequívoco sabor de violência interna e de traição a ti mesmo. E não importará por que motivos te encontraste nessa situação, mas simcomoorganizaste a tua realidade, a tua paisagem, naquele preciso instante. Algo se fracturou e mudou o teu rumo. Isso predispôs-te para uma nova fractura. Assim sendo, todo o acto contraditório orienta-te para a sua repetição, do mesmo modo que todo o acto de unidade interna também procura flutuar novamente mais adiante.

 

14. Nos actos quotidianos vencem-se dificuldades, alcançam-se pequenos objectivos ou colhem-se minúsculos fracassos. São actos que comprazem ou desagradam, mas que acompanham o viver diáriocomoos andaimes de uma grande construção. Eles não são a construção, mas são necessários para que esta se efectue. Talvez estes andaimes sejam de um material ou de outro; não importará isso, conquanto sejam idóneos para o seu objectivo.

15. Quanto à construção em si, onde puseres material defeituoso, multiplicarás o defeito e onde o puseres sólido, projectarás a solidez.

16. Os actos contraditórios ou unitivos dizem respeito à essencial construção da tua vida. No momento em que te encontres defronte deles, não te deves enganar, porque se o fizeres comprometerás o teu futuro e inverterás a corrente da tua vida…Comosairás depois do sofrimento?

17. Mas, acontece que nestes momentos, são já numerosos os teus actos contraditórios. Se desde os alicerces tudo está falseado, que resta fazer? Desmontar por acaso toda a tua vida para começar de novo? Permite-me dizer-te que não creio que toda a tua construção seja falsa, por conseguinte abandona ideias drásticas que possam acarretar-te males maiores do que aqueles de que hoje padeces.

18. Uma vida nova não se baseia na destruição dos “pecados” anteriores, mas sim no seu reconhecimento; de modo que se torne clara daí em diante a inconveniência daqueles erros.

19. Uma vida começa quando começam a multiplicar-se os actos unitivos, de maneira que a sua excelência vá compensando (até finalmente desequilibrar favoravelmente) a relação de forças anterior.

 

20. Deves ser muito claro nisto: tu não estás em guerra contigo mesmo. Começarás a tratar-tecomoa um amigo com quem deves reconciliar-te, porque a própria vida e a ignorância afastaram-te dele.

21. Necessitarás de uma primeira decisão para te reconciliares, compreendendo as tuas contradições anteriores. Depois, uma nova decisão para querer vencer as tuas contradições. Por último, a decisão de construir a tua vida com actos de unidade, rejeitando os materiais que tanto prejuízo têm atraído sobre a tua cabeça.

22. É conveniente, com efeito, que clarifiques no teu passado e na tua situação actual quais os actos contraditórios que verdadeiramente te aprisionam.Parareconhecê-los, basear-te-ás nos sofrimentos acompanhados de violência interna e do sentimento de traição a ti mesmo. Eles têm claros sinais.

23. Não estou a dizer que te devas mortificar com exaustivos inventários sobre o passado e sobre o momento actual. Recomendo simplesmente que consideres tudo aquilo que mudou o teu rumo em direcção desafortunada e que te mantém ligado com fortes ataduras. Não te enganes uma vez mais, dizendo-te que aqueles são “problemas superados”. Não está superado nem compreendido adequadamente aquilo que não se cotejou com uma nova força que compense e ultrapasse a sua influência.

 

24. Todas estas sugestões terão algum valor se estiveres disposto a criar uma nova paisagem no teu mundo interno. Mas, nada poderás fazer por ti, pensando só em ti. Se queres avançar, terás que admitir algum dia que a tua missão é humanizar o mundo que te rodeia.

25. Se queres construir uma nova vida livre de contradições, crescentemente superadora do sofrimento, terás em conta dois falsos argumentos: o primeiro apresenta-secomoa necessidade de solucionar os íntimos problemas, antes de acometer qualquer acção construtiva no mundo. O segundo, aparececomoum total esquecimento de si mesmo,comoum declamativo “compromisso com o mundo”.

26. Se queres crescer, ajudarás a crescer aqueles que te rodeiam. E isto que afirmo, estejas ou não de acordo comigo, não admite outra saída.

 

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